Dantes. Quando o tempo era tempo. Eu era feliz.
Mas parece ter sido noutra vida.
Um dia. De repente. Cansei-me. Sem que nada o indiciasse. Nada de que eu me apercebesse, claro está. Ninguém me garante que, no fundo do meu inconsciente, as rodas do mecanismo não estivessem já em movimento. A rodar em surdina. Activando silenciosamente toda a engrenagem. Todas as sinapses por sentir. Que conduziram a isto.
Um dia, de repente, cansei-me. Cansei-me de tanta coisa de que nunca me cansara antes. Cansei-me de tanta coisa que sempre me dera prazer e alegria. Cansei-me mesmo. Receio não saber explicar bem o que se passou. A verdade é que olho para trás na linha do tempo e vejo dois momentos adjacentes. No primeiro, tudo estava calmo. Eu e as minhas rotinas todas. Eu e o meu sossego despreocupado. No momento imediatamente seguinte, cansei-me. E fiquei mais livre das rotinas. Que, às vezes, vejo-o agora, pesavam como se fizessem parte de mim. Como se fossem apêndices muito pesados e grandes e disformes. Como um braço extra, com uns 2 metros de comprimento. Ou uma perna de chumbo a sair do fundo das costas.
Cansei-me um dia. De repente. E desde esse momento sou mais eu. E nunca mais precisei de descansar.
Passaram já muitos dias desde que tudo ficou na mesma. Muitos dias desde que o mesmo dia se arrasta à espera de uma noite e de uma madrugada. Passaram já muitas horas, fechadas dentro de si mesmas como se nada brilhasse por fora delas. E passaram os minutos e os segundos loucos. Loucos e iguais. Iguais e cinzentos. Cinzentos e cor de chuva. Ou de pó. Ou será o cheiro? De qualquer modo, passou tudo. Ou terá passado nada? Não sei. Não me recordo. O dia não acaba. Não passa. Não cessa. E por dentro tudo falece. Aos poucos. Como numa sinfonia ao longe, à beira da falésia. Lenta como só as sinfonias lentas. (E ainda mais. Como se os sons não fossem sons, mas fotografias de sons espalhadas pelo céu azul-quase-noite.) Lenta como o repicar dos sinos na igreja de um dia.
Fora isso nada. Como nada? Nada. Uma manhã-tarde que não se despe na noite. Uma luz fosca. Dúbia. Inerte. Que tudo mirra. Que tudo proíbe. Um limbo onde nada cessa. Onde nada principia. Como um calvário à luz gasta de um sol-que-nunca-se-põe.
[Agora mesmo... :)]Às tantas não quero saber. Sou uma pessoa que não quer saber. Foi nisto que me tornei. Um algo que não quer saber nada do que se passa no vazio por fora de si.
Às tantas acordei um dia e no lugar do coração tinha uma pedra sem movimento. Foi aqui. A este lugar sem som e frio. Que tudo veio dar. Que tudo. Veio dar.
Às tantas sou mais um. Mais um numa fogueira gigantesca. Mais um que tem nãos em vez de olhos. E paus em vez de mãos.
Agora. No fim da noite. Quando tudo parece ter passado. Sem se ter no entanto a certeza de se ter passado por alguma coisa. Ou de se estar apenas a iniciar uma outra. Agora quando o silêncio começa a corroer a euforia falsa. A euforia falsa que talvez só exista para proteger deste silêncio. Do silêncio de nos sentarmos sozinhos a meio da noite, de frente para nós, num confronto interno duro e mutilante…
Agora que desce sobre nós, como o cacimbo sobre a vegetação nas madrugadas geladas de Inverno, o peso das decisões tomadas. Tudo parece um pouco mais difícil… E somos folhas dobradas pelo peso de duas gotas – espessas, densas, lentas - de orvalho…